Cap. II - Curso de Polícia Aérea - 1964

01-04-2015 14:12
Cap. II - Curso de Polícia Aérea - 1964
Cap. II - O Curso da Polícia Aérea
Acabada a recruta, e depois de dez dias de férias, que aproveitei para me recompor, lá voltei à Base para iniciar o curso de Polícia Aérea.
 Novamente na 1.ª Esquadrilha mas, agora, no 3.º pelotão, tinha como comandante o 1.º sargento-paraquedista Oliveira e dois cabos milicianos da P.A. de cujos nomes já não me recordo. A nossa arma de instrução era a pistola-metralhadora FBP, de fabrico nacional.
Foi uma instrução dura, com o nível de intensidade muito acima do que acontecera na recruta.
Era descer pinheiros, de cabeça para baixo, era boxe, era luta de combate, era o combate noturno e o chamado brutobol, em que valia tudo. Aconteceram algumas peripécias que, por serem anormais, trouxeram ânimo e risos às hostes, como uma do nosso comandante de pelotão, o 1.º sargento paraquedista, Oliveira. Um dia teve a infeliz ideia de desafiar um colega meu, o 69, de nome Emílio, para um combate de boxe. O Emílio, era de Coruche, mas desde muito pequeno que morava na Madragoa, em Lisboa. Este aceitou de imediato o repto e, num minuto, deu cabo do canastro ao sargento. Este, mesmo com a fronha toda amarrotada, fez questão de esclarecer o pelotão, que aquilo que o 69 tinha apresentado ali, não era boxe nem era nada. Em vez de um boxe técnico, o Emílio tinha usado um boxe matreiro, do género fadista, lá da Madragoa. Foi por isso, por ter utilizado uma linha de boxe malandro, de baixo nível, que deu mais do que levou.
Alguns dos meus contemporâneos no curso de Polícia Aérea eram tipos famosos, como o Fernando Tavares, um boxista internacional do Sporting e participante nos Jogos Olímpicos de Roma em 1964; o Carlos Vitorino, ciclista do Tavira e o Indalécio de Jesus, ciclista do Louletano. Nunca tive o azar de defrontar o Fernando Tavares, mas gostava de vê-lo a malhar nos outros; especialmente nos torneios de boxe que se realizavam nos Paraquedistas, contra atletas deste regimento e, também, de outros clubes, como o Benfica o Mouraria e o Cova da Piedade.
De resto, o que por ali apareceu era tudo gente vulgar. Era raro vislumbrar-se um daqueles foras-de-série atípicos, que deixam o pessoal encantado. Além do “sessenta e nove”, do Tavares e dos dois ciclistas, havia o Taça, um tipo de Coruche que residia na Marinha Grande e que só corria para o bife e, como tal, era sempre o último; o tal Cárie Dentária, que jorrava sebo dos braços; o Nunes, que jogava no Beira-Mar e os famosos (pela negativa) Jorginho e o Vítor, aquele de Lisboa e este da Marinha Grande. Ao que se dizia eles tendiam para a homossexualidade, mas nunca foram expulsos da tropa ao abrigo do art.º 16.º, pelo menos enquanto estiveram em Tancos. Depois, não sei. Perdi-lhes o rasto.
Era uma época de gente pobre, que nada tinha. De entre trezentos e sessenta recrutas apenas um tinha automóvel: era o Passanha, filho daqueles Passanhas de sangue azul, ganadeiros e latifundiários do Ribatejo. Esse era rapaz fino e, por isso, raramente pernoitava na base.
Certo dia, houve um levantamento de rancho que trouxe alguns problemas e muita porrada a alguns dos colegas que o engendraram e, tirando isso, nada mais de relevante aconteceu.
O curso de Polícia Aérea estava a chegar ao fim. Nos últimos dias, o comandante da Esquadrilha mandou que se organizassem uma provas especiais de aferição cuja finalidade era selecionar os quatro soldados de cada pelotão, com maiores aptidões para frequentarem o Curso da Escola de Cabos. Já tínhamos dado o cérebro e o corpo ao manifesto vezes que bastassem para que os comandantes de pelotão tirassem as suas conclusões acerca da pujança mental e física de cada um, mas, pelos visto, isso ainda não bastava. Foi então ordenado que se fizessem uns combates de boxe com a finalidade de aquilatar das forças ou fraquezas dos contendores. Os vencedores iriam frequentar a dita Escola de Cabos. Foi assim que eu, tal como os outros colegas vencedores, fomos selecionados e demos um passo em frente.
Pouco depois realizou-se a cerimónia da “Entrega das Boinas”. Foi uma festa engraçada. Com demonstrações de como conter e contra-atacar motins e outros tumultos. Em pleno terreiro, houve uma demonstração de boxe, tendo combatido o nosso colega e olímpico Fernando Tavares e um cabo-miliciano corajoso quanto baste, para apanhar uns valentes sopapos, sem direito a queixinhas.  
Numa certo dia de junho de 1964, recebemos ordens do comandante de pelotão para que, na manhã do dia seguinte, nos apresentássemos de barba bem escanhoada, PQ8[1] vincado e botas a brilhar. Segundo nos disseram, tratava-se de um exercício especial.
Foi assim que, naquela manhã, nos apresentámos na parada, prontos para o que, secretamente, nos tinha sido reservado. É verdade que, cá entre nós e entre dentes, íamos tecendo as mais variadas conjeturas acerca da insólita ordem mas, como ordens são para cumprir e não para serem discutidas… Cada um inventava ou tentava adivinhar o que dali iria sair, mas a maioria aventava a hipótese de se tratar de uns exercícios de preparação para o desfile e parada militar do 10 de junho, no Terreiro do Paço, em Lisboa.
O alferes Barroso mandou formar e, depois de cinco minutos de ordem unida, ordenou que o seguíssemos, em marcha acelerada, e foi neste ritmo que atravessámos o campo de futebol. Em seguida, descemos as vertentes da Base até junto da linha de água que passa a norte, mas agora já em passo de corrida moderada, uma espécie de trote, como diria o meu conterrâneo Zé Vieira.
Aqui, já muitos de nós desconfiávamos de algum truque que o mestiço do alferes estivesse a tramar. De cada vez que ele dava uma ordem, era sempre para agravar a situação, tanto assim que, depois de termos mudado o ritmo para galope, em vez de atravessarmos o riacho para o lado do pinhal, recebemos ordens expressas do alferes Barroso, para que o seguíssemos entrando na linha de água.
Quanto mais caminhávamos para a foz do riacho, maior era a parte do corpo que submergia. Como era Verão, aquilo não arrepiava tanto como se fosse na época da recruta, mas custava um bocado. Ainda não era tanto pelo facto de se estar dentro de água, vestido de lavado e calçado, mas pela qualidade da água do riacho que, à medida que íamos progredindo para jusante, ficava mais turva, deteriorada e expelia um cheiro nauseabundo.
Já estávamos a chegar perto da foz do pequeno curso hidráulico. Agora, com a imundice a flutuar perto do queixo de cada militar, também dava para ver que toda aquela torrente de chafurdice provinha das pocilgas e capoeiras da agrícola da unidade militar do Regimento de Engenharia de Tancos. Com o alferes sempre na frente, atingimos o ponto onde ele achava que devíamos estacionar.
Depois de nos ter convidado a gritar, meia dúzia de vezes, o estafado slogan “A tropa é boa? É!”, lá ordenou que se fizesse o percurso inverso, riacho acima, para montante, no fim do qual, todos e cada um teriam que fazer trinta completas[2]. Dizia ele que, antes de um grande desafio, nada como um mau ensaio.
A partir de agora, todos tomavam conhecimento oficial de que a ida a Lisboa, ao desfile do 10 de junho, seria mesmo uma realidade. A diferença, era a de que o atavio não seria o mesmo, iríamos mais brunidos, armados de metralhadora FBP e, por muito mal que o Tejo cheirasse, ali no Cais das Colunas, nunca seria de comparar ao esgoto da Agrícola de Tancos… enfim, fantochadas de tropa! E no dia de Portugal, lá fomos mesmo prestar vassalagem ao Presidente Tomás, ao 1.º ministro Salazar e mais à sua comitiva. Era o Dia do Pagamento aos heróis da Guerra do Ultramar. Aos vivos, porque aos mortos, que Deus lhes pagasse.
 
Próximo Capítulo: - Na Escola de Cabos da P.A.
 
 
 
 
[1] Fato de combate.
[2] Trinta flexões, trinta cangurus e trinta pulos de galo.