Cap. I - Na Recruta

01-04-2015 14:10

Cap. I - Na Recruta - Força Aérea -1964

 
5º Pelotão - 1ª Esquadrilha
A 1ª Esquadrilha
 
Eu e a Mauser
                                                                           


 
- Na Base Aérea Nº3, em Tancos
 
Capítulo I - "A Recruta"
Como estava muito perto de fazer os vinte anos e não teria tempo de fazer o Curso Industrial antes de ir para a tropa, pensei que o melhor que tinha a fazer era ir mais cedo para a tropa. Pelo menos, adiantava a vida civil e, quando saísse, logo se via a maneira de continuar a estudar de noite. Assim fiz. Em novembro de 1963, preenchi os questionários de pedido de alistamento na Aeronáutica e em 4 de dezembro, depois da inspeção nas instalações da Força Aérea, no Monsanto, fui alistado como voluntário na Polícia Aérea. A incorporação, a título oficial, deu-se a 16 de janeiro de 1964, embora eu tenha recebido a guia de marcha para me apresentar na Base Aérea nº 3 de Tancos, em 14, dois dias antes.
 
Rapei o cabelo, arranjei o saco e pus-me à boleia para o Vale de Santarém, onde apanhei o comboio para um destino que devia ser Almourol, perto de Tancos. Todavia, houve um pormenor que alterou por completo todo o trajeto; é que, para desembarcar em Almourol, eu deveria ter descido no Entroncamento, deixando a linha do Norte e mudado para o comboio da linha da Beira Baixa. Em vez disso, passei o Entroncamento e, quando cheguei à Lamarosa vi que já tinha feito burrada. O que eu tinha em mente, por informações recolhidas era que, a seguir ao Entroncamento, a estação que me aparecia seria a da Barquinha e não a da Lamarosa. Dirigi-me ao chefe da estação a pedir informações e o que ele me aconselhou foi apanhar um táxi para a Base Aérea, até porque, voltando ao Entroncamento, já não dava tempo para apanhar o comboio da linha da Beira Baixa. E foi o que fiz: tomei o táxi e, pela inesperada viagem, paguei setenta escudos, que muita falta me fizeram naqueles dias em que estive na Base. A primeira nabice, em tempos de tropa, já estava feita.
Não me restava outra alternativa que não fosse a de ir a casa, mendigar o dinheiro que me fazia falta para as viagens, comprar umas cartas e uns selos, para escrever à namorada, comprar uma caixa de pomada para engraxar as botas, umas lâminas e um sabonete. Ir ao Bar da Base, era muito raro. Se eu, em média, bebi lá uma laranjada por semana, foi o muito. Era a minha extravagância.
A muito custo, ainda cheguei a fazer algumas viagens na Famel, mas esta precisava de conserto e não havia ordem do chefe para o fazer.
Tudo isto teria sido evitado se, em casa, as chefias tivessem aceitado a minha proposta, tal como descrevi no livro do Volume I. O prometido quase nunca foi cumprido. Não fora ter ganho algum dinheiro em trabalho aos domingos e tinha passado uma tropa desgraçada. Bem, mas a tropa ainda nem sequer tinha chegado à parada.
No dia seguinte, num dos hangares da Base, formou-se uma enorme fila de umas centenas de mancebos e esperei pela minha vez. Depois, recebi o nº 137, fui colocado na 1.ª Esquadrilha e passei a pertencer ao 5.º pelotão. Tal como eu, perfilava-se um grande grupo outros mancebos, cada qual lendo, em silêncio, o que ia na mona. Havia uns que, por isto ou por aquilo, se destacavam dos outros, como, por exemplo o Emílio. Era nascido na vila ribatejana da Golegã, mas aos seus 7 anos passaram-no para Lisboa, mais propriamente para o bairro da Mouraria. O mangas não parava sossegado. Graçola para aqui, piada para acolá, o Emílio dava nas vistas. Nem com o raspanete do sargento que orientava a distribuição do fardamento, o tipo se acalmou. Mal se aproximou da mesa, foi-lhe ordenado que se retirasse da fila e permanecesse de lado até ser chamado. Quando o sargento achou o momento era propício, chamou pelo Emílio e ordenou ao cabo de serviço:
"Nosso cabo, este mancebo vai ser registado com o nº 69!"
 E foi assim que, durante toda a recruta, toda a gente na Base sabia quem era o 69, passando a sua alcunha para Emílio.
 
Esta Base Aérea, como todas as Bases, situava-se longe da civilização. Era um ermo rural de onde apenas se destacava a zona que confinava o chamado Polígono Militar de Tancos, onde se inseriam as unidades da Base Aérea Nº3, Regimento de Paraquedistas e Escola Prática de Engenharia.
O comandante da BA3 era o coronel piloto-aviador A.J. Rosa Rodrigues. As aeronaves que pertenciam a esta Base eram os Junkers Ju52 – os chamados JU – de fabrico alemão, que eram utilizados no transporte de tropas e no lançamento de paraquedistas. Havia, ainda, os helicópteros tipo Allouette que, além de outras funcionalidades, também eram utilizados no lançamento de paraquedistas.
Na recruta, o comandante da 1ª Esquadrilha, que era composta por 180 rapazolas, era o alferes-paraquedista Matos. Os monitores que me calharam na rifa foram: o aspirante Lapa, de Sernancelhe; o soldado da Polícia Aérea, José João, do Porto, e o cabo miliciano Bento, de Famalicão. Faziam parte do meu pelotão uns 30 indivíduos, oriundos das mais variadas zonas do país. Gente de Trás-os-Montes, Minho, Beira Alta, Douro Litoral, Beira Litoral e Alto Alentejo. Ribatejano era só eu.
No fim-de-semana de 18 e 19 de janeiro, fiquei na Base, em virtude de não haver dispensa de saída para os novos recrutas. Como não tinha ninguém conhecido naquela esquadrilha, andei com uns tipos do meu pelotão, a saber: o José Maria Capitão, de Leça da Palmeira, o Zé Moura, de Paços de Ferreira e o Leonel, da vila da Lixa, que, a pé, fomos conhecer os arredores, que nada tinham para ver. Passámos pelas Limeiras, Roda Grande, Roda Pequena, onde conhecemos a menina Adozinda, uma carinha laroca, filha da taberneira. Depois, andámos pela Aringa, em frente ao Quartel de Engenharia e, aqui, numa tasca cheia de soldados, fizemos um jogo de matraquilhos, vimos que havia ali um cinema, que pertencia à Engenharia, e tinha acabado a folga. Era tempo de regressar à Base.
 
No fim-de-semana seguinte, a rapaziada estava ávida de dar um salto até casa para, quanto mais não fosse, mostrar a farda e trazer umas lecas no bolso, se fosse caso disso. Só que, mesmo sem termos qualquer espingarda, nos saiu o tiro pela culatra. Antes do ato do recebimento do salvo-conduto que nos garantia a livre ida à terra, o oficial de dia mandou formar os recrutas nas camaratas, por pelotões e em alas, cada qual junto da sua cama, para serem submetidos à inspeção no que concerne à limpeza do conjunto e ao atavio de cada militar.
Tudo em sentido. Eis que entra o alferes Matos. E, pelo que disse, ninguém sairia da Base nesse fim-de-semana. Segundo o seu ponto de vista, as coisas estavam assim:
— Sim, senhores recrutas! Esta camarata não está suja! Esta camarata está porca!— e prosseguindo:
— Em vossas casas também convivem com a espécie de lixarada que estamos aqui a constatar? E as camas? Quem é que vos disse que os cobertores eram auto-esticantes? E a dobra dos lençóis, é assim como esta, por exemplo? Além do mais, há para aí algumas botas muito enevoadas! E este peitoril de janela, não é para estar limpo a tempo e horas da inspeção?
O ambiente era de terror. Creio que todos tremiam que nem varas verdes, já a adivinhar o que é que ia sair dali. Então, para não iludir as expetativas, o alferes disse:
 Este fim-de-semana ninguém sai da Base! Pode ser que, assim, haja tempo para fazer a limpeza condignamente!
E, sem dizer adeus, saiu porta fora. 
 
Agora, à distância de cinquenta anos, não posso afiançar que todos os recrutas tenham ficado na Base, mas eu não fiquei.
Se a minha namorada fazia dezoito anos no dia seguinte, sábado, como é que eu podia ficar preso na Base se, ainda por cima, não tinha a consciência pesada por qualquer cometimento grave que pudesse pôr em causa a instituição militar? E, vai daí, combinei um esquema com um colega e pus-me ao fresco. Ele só tinha de responder pronto, por mim, nas chamadas nas formaturas para o refeitório. Como os sargentos de dia ou os oficiais não nos conheciam, era fácil. E, por acaso, não houve mesmo qualquer problema: tudo correu como planeado.
Havia umas cenas e uns cromos muito razoáveis naquela Esquadrilha, além do já famoso 69. No meu pelotão, que ia do nº121 ao 150, destacavam-se o Zezinha, que era de Resende, o Vítor Mimoso, da Marinha Grande e o Teixeira, por alcunha o Cárie Dentáriaque era de Quadrazais, concelho do Sabugal, ali mesmo no sopé da serra da Malcata. Este último que, em condições normais, nunca tomava banho, passou a tomá-lo à força. Das primeiras vezes, começou por ser enviado para o chuveiro vestido e calçado, depois, com o tempo, foi-se ambientando e, já muito perto do fim da recruta, já conseguia tomar duche despido e sozinho. Estávamos em janeiro e a zona de Tancos era bastante fria; seria por isso que ele não se lavava? Mas se ele até era oriundo da mais fria zona do país…
Logo na primeira vez que, na instrução, me calhou este fulano, como parceiro, para fazer luta de corpo a corpo, eu reparei, que aquilo que alguns colegas tinham dito dele era bem verdade: os seus braços escorregavam como se estivessem ensebados. Logo na primeira vez que o agarrei constatei isso. Então, achei por bem avisar o tipo de que deveria queixar-se ao aspirante, que estaria a sofrer de uma qualquer dor ou maleita que o impediam de fazer aquele tipo de exercícios. Mas ele é que não foi na conversa e a sessão continuava. Passei à fase da ameaça, dizendo-lhe:
— Ó pá! Ou tu dizes ao aspirante que te dói o corpo e sais já daqui para fora, ou então vou eu dar-te uma ensinadela. Seu grande porco!
E assim foi. Na ação de ataque e projeção à retaguarda, atirei com o Cárie Dentáriade tal forma, que acabou no chão, meio empenado, a contorcer-se com dores. Mas, se eu já o tinha avisado, porque não parou ele? É que, ainda hoje, quando me lembro disto, ainda que passados todos estes anos, me parece que estou a sentir nas mãos aqueles braços esbranquiçados e pegajosos, envoltos numa camada gordurosa que mais pareciam estar besuntados de óleo ou sebo. Não sei qual era a ocupação daquele indivíduo antes de ter ido para a tropa, mas que ele não trabalhava nem andava ao sol, disso tenho a certeza. Era branco como a cal virgem. Ele daria um bom anunciante para um qualquer detergente do tipo Tide ou Omo que, na época, andavam a competir no mercado.
Nesta recruta havia de tudo: aqueles que, quando recebiam uma ordem para volver à esquerda, viravam à direita, e era preciso colocar-lhes uma pedra na mão, que funcionaria como bússola; havia aqueles que andavam à procura das estrias da espingarda que, segundo o monitor, aquele o recruta tinha perdido… enfim, umas peripécias humorísticas que ajudavam à galhofa e à boa disposição.
 
Ainda no decorrer da recruta, que durou até março, fui internado na enfermaria da Base com parotidite epidémica, vulgo papeira. Estive isolado dez dias, a ter umas bolachas e leite como alimentação e a levar a cara e o pescoço barrados com uma massa castanha, a que chamavam bálsamo de peru. Finda a clausura, saí bastante debilitado e regressei ao meu pelotão para fazer parte das afinações para o juramento de bandeira. Foi por uma diferença de dois dias que não perdi a recruta. No acto do juramento de bandeira, mal pude suster a arma, por falta de forças. Não estava calor, mas eu transpirava por todos os poros. Mas, com todo aquele sacrifício, lá cumpri aquela etapa.
Antes, porém, e por sugestão do meu comandante de pelotão, aspirante Lapa, ainda fui submetido a um casting para vocalista do conjunto da Base, o “Luva Negra”. Este grupo musical já existia há dois meses; tinha como timoneiro o alferes miliciano da Polícia Aérea, Carvalho Fernandes, que tocava órgão, o seu baterista era o Alexandre Meireles e, como vocalista, tinha o Vítorino, o “Setúbal”. Verifiquei, algum tempo depois, que, salvo melhor opinião, o “Setúbal” não era melhor vocalista que eu, mas como já lá estava desde o início da recruta, há dois meses, já tinha uma certa vantagem. Isto porque, no ato da incorporação, o Vitorino tinha dado como um dos seus hobbies, o de ser vocalista. Como ninguém mais tinha declarado tal atributo, bom ou mau, ficou ele.
O meu aspirante, o Lapa, assim como os meus colegas de pelotão da recruta, já me tinham ouvido cantar algumas vezes, a pedido dos mesmos. Tudo começou, quando, numa pausa entre duas fases de exercícios, cantei uma ou duas cantigas que, na época estavam em voga. Lembro-me de “Piove” e de “Come Prima”, duas italianas que serviram para desbravar caminho para umas outras que me eram pedidas e eu, cheio de peneiras, cantava. Cantava e animava a contento, pelos vistos, porque as solicitações eram tantas, quantos os intervalos que tínhamos entre disciplinas. E foi num desses períodos de descanso, que passou por nós o alferes do órgão, o Carvalho Fernandes, que foi interpelado pelo Lapa, no sentido de o desafiar a conceder-me uma audição num dos ensaios do conjunto. Aquele alegou que de vocalista já estava servido, mas já que o colega Lapa insistia na ideia, sempre me concederia a audição. E marcou-me data e hora para que me apresentasse na sala de ensaios, a fim de mostrar as minhas aptidões vocais.
Lembro-me de que o ensaio ia ter início às 20h00, mas eu, dez minutos antes já lá estava. Estava eu, e em cima da hora, lá chegaram os outros três. Foi então que o chefe da orquestra me perguntou o que é que eu queria cantar, ao que eu respondi:
― Posso começar com “Perfídia” do Nat King Cole, se puder ser.
E tanto pôde, que foi isso mesmo que interpretei. Não sei o Carvalho Fernandes gostou muito ou pouco, porque ele apenas me perguntou qual era a seguir. E a seguir, sem interrupções, vieram o “Camino de Sahara”, de Los Tamara; “Y Watusi”, de Edoardo Vianello e, para rematar, o “Tchin tchin a la santé”, de Richard Anthony. E digo para rematar, porque, após a quarta interpretação, o alferes achou que aquilo que ouvira já seria suficiente para - julgo eu - concluir que não estava na presença de nenhum fora de série e que, para aquilo que o “Luva Negra” precisava, já ele lá tinha.
Entretanto, durante todo o tempo em que fui atuando, o Vitorino olhava-me com oolho esquerdo, como que a fazer figas, de modo a que eu não ocupasse o seu lugar. E, findo o teste, não fiquei no lugar de ninguém, já que o alferes se levantou do banquinho do órgão, deu-me os parabéns, dizendo que gostou imenso, mas dizendo ao mesmo tempo que, como eu compreenderia, não podia expulsar o “Setúbal” do grupo para me dar o lugar a mim. Então, o que preconizava, desde que eu não me importasse, era ficar como suplente e, assim, num qualquer imprevisto ou impossibilidade do Vitorino, seria a minha vez de atuar. Perante tal deliberação, eu não aceitei a alternativa e, embora de modo civilizado, disse-lhe que tudo bem, mas não contasse comigo em tais condições. E fui-me embora. Mas se aquele casting fosse feito cá fora, na vida civil, eu teria dito ao organista que ele até podia perceber muito de teclados, mas de vocalistas é que ele não percebia nada. Como é que o “Setúbal”, uma voz de cana rachada, podia ser a voz do “Luva Negra”, em meu detrimento? O estar lá há algum tempo, antes de eu ter chegado, também contava? Eu achava que não... Mas, em ambiente de tropa, não pude refilar.
Como era de esperar, no dia seguinte todos quiseram saber como tinha corrido ocasting da véspera. E foi com mágoa que a malta, incluindo o aspirante Lapa, ficou a saber do resultado, do mau resultado. Alguns deles, dos que já tinham ouvido a voz do “Setúbal”, juraram ali, a pés juntos, que eu era muito melhor vocalista que ele, mas quem podia, decidiu assim...  
Dois dias volvidos e novo encontro do meu pelotão com o Carvalho Fernandes. Foi então que o meu aspirante, o Lapa, desancou o colega, dizendo-lhe, inclusivamente, que ocasting estava viciado à partida. O outro esboçou um sorriso amarelo, por debaixo da boina azul, e disse:
 Ó Lapa, o teu recruta até é um bom vocalista e, além disso, tem na bagagem canções de top, mas ele recusa-se a jogar a suplente… e tu achavas bem que eu despedisse o “Setúbal”, que já está comigo há dois meses, para lhe dar lugar ao Zé Luís? Era chato, não achas?
E, voltando-se para mim, disse:
― Olha que eu fico a contar contigo, para o caso de haver algum percalço, ouviste?
Eu encolhi os ombros, como que a dizer: “Vai-te lixar!” Ele deu meia volta e desandou dali. Por agora, estava encerrado o capítulo musical, a par da recruta.